sábado, 8 de novembro de 2008

O Ébano e o Marfim

Algumas pessoas dizem que o mundo é dividido em pares de opostos; bem e mal, caos e ordem, certo e errado, causa e consequência.Não só esses opostos existem, como deve existe também um equilíbrio invisível entre eles, que esse o que segura o nosso universo inteiro.Bom, eu não sei se isso que eu estou dizendo faz muito sentido, ou se só estou fazendo uma introdução pretensiosa novamente, mas acho que todos nós sempre procuramos um pouco de equilíbrio em nossas vidas.Por exemplo, eu gostaria de fazer mais de uma análise por mês (invariavelmente próximo ao dia 15 de cada mês- não é proposital, mas é curioso), mas eu não tenho tempo pra zerar jogos ou escrever como outrora(eu estou tendo que lidar com o vestibular E as complicações típicas de final de adolescência, afinal).Mas o que eu tava falando?Sim, caos e ordem, equilíbrio universal.E se alguém resolvesse usar esses conceitos dentro de um jogo?(subam as cortinas logo, por favor...essas introduções ficam a cada análise mais complicadas)


Ikaruga foi lançado pela Treasure em 2001 para arcades, e depois convertido para Dreamcast e Gamecube (versão na qual essa análise é baseada – um viva para a primeira análise de GC aqui no GA!),e é a primeira vista parece mais um jogo de navinha (nada contra - afinal, eu adoro jogos de navinha).Mas certamente não é: primeiro, que é um jogo da Treasure, uma das desenvolvedoras mais criativas da indústria dos jogos (e responsável por alguns favoritos meus, como o superlativo Gunstar Heroes e Astro Boy:Omega Factor);segundo, é uma espécie de sucessor espiritual de Radiant Silvergun, um dos mais idolatrados jogos desse gênero (eu já joguei -semana passada- e é bom mesmo).Mas enquanto esse jogo contava com dúzias de armas diferentes, quase vinte fases e uma história grandiloquente, Ikaruga vai na direção contrária, apresentado uma mecânica elegante e minimalista, e uma narrativa mais sutil.O jogo tem uma história por trás sim, mas ela não aparece de nenhuma forma dentro do jogo, sendo só relatada através do manual do jogo.De qualquer forma, é o seu típico herói-solitário-contra-um-exército-do-mal, só que um pouco mais elaborado.Na versão japonesa, existiam pequenos textos entre as fases que desenvolviam um pouco mais a trama, mas isto foi cortado pela Atari (que publicou o jogo aqui no Ocidente).


Ikaruga é um jogo de navinha (ou shooter, ou schmup-aqui, é você quem manda!) com rolamento de tela vertical, e se você se lembra da análise de Einhander, sabe que boa parte desses jogos costumam bombardear o jogador com zilhões de balas na tela ao mesmo tempo, e cabe a ele desviar de todas.È lógico que Ikaruga tem momentos típicos de "bullet hell" (mas nada como esse jogo aqui), mas não é isso que o destaca, e sim a sua inteligente mecânica de polaridade.No mundo de Ikaruga, todos os inimigos são da cor preta ou branca, e seus tiros correspondem essa sua cor.Mas o interessante é que a sua nave pode, com o toque de um botão, trocar entre essas polaridades, podendo atirar e absorver tiros de uma das polaridades; logo, a nave só é destruída se for atingida por um tiro de uma polaridade oposta, ou colidir com o cenário.Os tiros absorvidos carregam uma barra de energia no canto da tela, que indica o quão carregado está o seu tiro especial:esse tiro funciona mais ou menos como aquelas bombas que explodem tudo que está na tela:ao acioná-lo, a sua nave dispara uma série de mísseis teleguiados, que servem para livrar o jogador de situações mais complicadas.Além disso, os tiros de uma polaridade causam o dobro de dano em inimigos da polaridade oposta, adicionando uma nova camada de estratégia á um jogo que já é bem complexo.


A pontuação também é dada de forma diferente em Ikaruga; ao contrário da maioria dos schmups, onde cada inimigo abatido fornece uma pontuação, neste a cada três inimigos da mesma cor abatidos, o jogador faz uma "chain", e a cada nova "chain", mais pontos são fornecidos,até uma chegar a "MAX chain".Também, absorver balas da polaridade da sua nave também fornece alguns pontinhos.Então, para se dar bem em Ikaruga (já que uma determinada quantidade de pontos fornece uma vida extra), é necessário estratégia e cautela.Não que não seja possível sair atirando desmioladamente em tudo que passar (é até uma estratégia bastante válida em alguns momentos), mas se você quer jogar direito, é melhor começar a decorar os padrões de aparecimento dos inimigos(o que acaba por acontecer naturalmente, depois de um tempo).E é aí que chega um ponto crucial de Ikaruga:para inciantes ou veteranos, é difícil pra caramba.Sim, eu já falei isso de alguns jogos aqui no blog, mas sobre este, eu estou falando sério.Aqui a curva de aprendizado tá mais para pirambeira de aprendizado, de tão íngreme.Porém, uma das características mais curiosas deste título é que a dificuldade é sim, vencível (eu gastava quatro continues para passar das duas primeiras fases quando comecei a jogar, e agora eu gasto no máximo três vidas), parte porque o jogo é tão brilhantemente pensado, que, conforme o jogador vai se acostumando com as mecânicas e os desafios, e aprendendo novos truques, tudo vai se tornando orgânico, e cada vez mais divertido.


Vejamos bem, o gênero dos jogos de navinha é esnobado por alguns gamers justamente por sua característica definidora, a simplicidade.Mas essa simplicidade justamente é o que diminui a distância entre o design e o jogo propriamente dito, o que permite o designer pirar nas idéias e fazer algo realmente notável.E talvez nenhum jogo exemplifique melhor isso do que Ikaruga.Cada onda de inimigos de uma cor aparece na mesma proporção que os da cor oposta, o que permite criar chains com precisão matemática; cada momento do jogo apresenta uma combinação nova de inimigos e tiros, mas mesmo assim o equilíbrio entre eles é preservado.E cada uma dessas situações parece ter uma estratégia por trás, que se desvendada,permite ao jogadores ganhar grandes quantidades de pontos.Não por acaso, o desenvolvimento do jogo (que é relativamente curto,tendo apenas cinco fases e podendo ser zerado em menos de meia hora) consumiu dois anos inteiros, uma eternidade para um jogo de navinha.E esse capricho não faz se sentir só no design, como também nos gráficos e no som; apesar da jogabilidade ser essencialmente 2D, todos os modelos são em 3D, bem como os cenários ao fundo.Também, alguns dos padrões de bala são hipnotizantes quanto mortais (segunda e quarta fase, se quer exemplos).Além disso, como todo schmup que se preze, Ikaruga também conta com uma trilha sonora de alto calibre, que não enjoa mesmo depois de jogar o jogo centenas de vezes.


O leitor atencioso já deve ter notado que repetição é grande parte da experiência do jogo, é embora isso não seja negativo, porque é como o jogador vai ganhando habilidade; mesmo assim, existem três modos de dificuldade diferentes, Fácil, Médio, ou Difícil, que ao contrário do que se poderia imaginar, não deixam o jogo fácil, médio, ou difícil;no modo Fácil, destruir inimigos não provoca nada, enquanto no Médio, destruir um inimigo da mesma polaridade da sua nave joga uma série de balas da mesma polaridade na sua direção, e por fim, no Difícil, todo inimigos destruído lança uma chuva de balas contra você.Embora para os iniciantes, o melhor seja jogar no modo Fácil, o jogador um pouco mais experiente vai ter mais facilidade com o Médio, pois nesse, as balas liberadas dão um bônus considerável para sua pontuação, além de manter o seu super-raio-que-destrói-tudo sempre carregado.Por essas e outras que os jogadores mais aficcionados por Ikaruga se esforçam para dominar o jogo em todos os modos.


Felizmente, a versão de console oferece uma série de opções para treinar e refinar suas habilidades no jogo, como as opções Conquest, que permite rejogar seções curtas das fases e ver demonstrações de como jogar essas seções, e Practice, onde se pode jogar fases inteiras em diferentes níveis de dificuldade.O problema é que as fases só são liberadas para esses modos ao chegar nelas com apenas um continue (o que, desnecessário dizer, é ridiculamente difícil).Além disso, existem extras a serem liberados (como arte conceitual, teste de som e o Prototype Mode, que consegue deixar o jogo ainda mais esculhambadamente difícil)para aqueles que conseguirem zerar o jogo sob certas condições, ou jogar por um determinado número de horas.Aliás, a cada hora de jogo registrada, o jogador ganha um continue extra para usar no jogo, até que se ele alcança 8 horas, ganha continues infinitos (o chamado modo Free Play), permitindo que todo mundo consiga chegar até o final do jogo.O único problema disso talvez seja que, uma vez com o Free Play liberado, é impossível desativá-lo, o que impede o jogador mais egocêntrico de exibir suas técnicas para os seus amigos.E falando em amigos, Ikaruga também tem suporte para dois jogadores, que é tão divertido (e mais competitivo) quanto jogar sozinho.


Mas aqueles que enxergarem Ikaruga apenas como um desafio dos brabos provavelmente não vão conseguir o simbolismo mais profundo que existe em suas entrelinhas.O observador um pouco mais perspicaz vai logo perceber que o jogo é cheio de imagens que evocam a filosofia oriental, como o Yin Yang(veja o chefe da segunda fase), que representa os pares de opostos em equilíbrio no universo; além disso cada uma das cinco fases do jogo (Ideal, Julgamento, Fé, Realidade e Metempsicose) são nomeadas com base nas etapas que a humanidade deve ultrapassar para alcançar a iluminação.Seguindo essa linha de pensamento, a sua nave representaria justamente o ser humano, constantemente mudando a sua "polaridade" para entender o mundo a sua volta e se adaptar aos seus desafios.O citado equilíbrio entre os inimigos de ambas as cores, além de diversos momentos no jogo que podem ser metaforizados pelos com maior capacidade de abstração que eu, servem para confirmar essa idéia.Por fim, a dificuldade algo exacerbada do jogo explicita a sua complexa mensagem,a da dificuldade que é encontrar o equilíbrio e a calma em meio ao caos.


Mas e se existe uma falha neste jogo, com certeza é a sua dificuldade.è certo que um jogo mais fácil perderia um pouco da sua força simbólica, e também o jogo é bem feito o suficiente para nenhuma das mortes darem aquela sensação barata de "o jogo roubou".Mas essa dificuldade exige que o jogador realmente se dedique, pense em estratégias e não se frustre com facilidade, já que até conseguir algum domínio no jogo, ele irá morrer muito (a não ser que ele seja como aquele demente que consegue jogar com duas naves ao mesmo tempo).Depois de um tempo, quando o jogador já conseguiu continues infinitos, o desafio passa a não ser mais zerar o jogo, e sim conseguir a melhor performance, com mais pontos e vidas.Nisso, alguns jogadores podem se ver desestimulados, pois o objetivo é menos recompensador e o aprendizado é árduo.E francamente, a vida é muito curta pra ficar se dedicando tanto á um jogo.Além disso, a dificuldade poderá espantar aqueles que se poderiam se interessar pela força simbólica, e mesmo pela experiência quase espiritual que é o jogo, o que restringe suas possibilidades.Dito isso, sempre haverão os jogadores mais fanáticos, aqueles que realmente irão se divertir ao melhorar, degrau por degrau, sua perícia no jogo.Quanto ao resto dos mortais,a única recomendação que fica é que o consumo exagerado de álcool pode melhorar a técnica e os reflexos do jogador incauto em Ikaruga (Hã, não que eu tenha testado isso.Não, sério, não!)


Apesar dos pesares, Ikaruga é um dos jogos de navinha mais famosos e populares entre, bem, as pessoas que jogam jogo de navinha, e se tornou ainda mais reconhecido com o seu relançamento na Xbox Live, a rede de download de jogos do Xbox 360, que conta com um competitivo scoreboard online para os fissurados.Além disso, os muitos fãs do jogo já prestaram diversos tributos ao jogo, como um remake feito em Game Maker, e um outro feito com gráficos de Atari.Apesar de todo esse culto, a Treasure mantém a boca fechada quanto á uma possível sequência, apesar do ressurgimento da popularidade desse gênero.Por isso, Ikaruga ganha aquela certa aura de unicidade (eu não sei se essa palavra existe) no panorama dos jogos, se erguendo não por seus gráficos ou marketing em sua volta, e sim pela força inabalável do seu design.È um jogo a ser respeitado, mesmo que ele não respeite muito você...



(E o título dessa análise não é de jeito algum uma referência á essa música. Até porque, essa música é terrível,).